“Amigos Improváveis”

Na primeira semana de estágio assisti a algo que me deixou sem palavras. Tive a oportunidade de receber um utente que apresenta uma limitação  enorme, que não lhe permite ser autónomo, muito pelo contrário, impossibilita-o de falar correctamente, de executar as actividades do dia-a-dia, de andar. Por esta razão, necessita de auxílio de outras pessoas para tudo… tudo mesmo, necessita de ajuda 24h por dia.

O utente veio então acompanhado por um jovem, latino-americano, muito expressivo, cuja linguagem não-verbal estava à vista de todos. O jovem aparentava não ter qualquer competência para executar tal trabalho. Um pouco desajeitado, era ele que ajudava 24h aquele utente.

Muitos eram os olhares de desdém perante todo aquele cenário. Até certos comentários se escutavam: “É impressionante como há quem se aproveite de quem menos pode. De quem não se pode defender”.

Ao lidar com o utente, utente esse de grandes posses monetárias, no entanto muito solitário, percebi que o utente era um utente feliz. Apesar de todas as limitações, apesar de necessitar de ajuda para tudo, é uma pessoa feliz. Curiosa, tentei compreender quais os sentimentos do utente, quis conhecê-lo melhor e, claro, perceber como era aquela relação.

Quando questionei o utente acerca daquele rapaz, se era seu familiar, o mesmo respondeu com dificuldades, mas a seu tempo respondeu: “Podia… ser… mas… não… aconteceu. O… destino… não quis… mas eu… sim”.

Apesar das limitações da fala, não deixei que essas fossem um obstáculo na nossa relação e expliquei ao utente que não precisava de ficar nervoso sempre que quisesse falar, porque eu esperava, demorasse o tempo que demorasse, eu ia ouvi-lo. O utente ficou imenso tempo a olhar para mim e fez-me sinal para reparar no seu cuidador. Após olhar um pouco, continuei a ver um jovem desastrado, desajeitado e até mesmo sem maneiras. Falava alto, comia de boca aberta, entre outras atitudes que não são muito bem vistas perante a sociedade.

O jovem, ao reparar que estávamos a olhar para si, dirigiu-se até nós. Deu uma palmada com toda a força nas costas, o que fez com que toda a gente no ginásio ficasse a olhar e disse: “Então “tio” (expressão espanhola semelhante a “chavalo”, por exemplo), hoje tens direito a outra fisioterapeuta? Começo a achar que também preciso de uma cadeira como a tua!” – e riram-se os dois durante bastante tempo. Até eu fiquei contagiada e me ri imenso. No entanto, os olhares continuavam e até o próprio rapaz notou isso, o que o levou a explicar-me: “Sabes… como te chamas mesmo? Bom, não importa… Posso tratar-te por portuguesa. Eu tenho que lhe bater, bater mesmo! Não é que eu goste! Mas o “tio” só sente assim! E então olha… faz-se o que ele gosta! Eu sei que eu pareço um parvo, um sem ninguém, um sem tecto… E era! Ou sou… Não sei bem. Mas é o mínimo que posso fazer depois do que este “tio” fez por mim. Um amigo para a vida! Mais do que um pai! Pai não, não é “tio”? Pai é muito velho… Um irmão!” – voltando a dar uma grande chapada, desta vez na cabeça, todavia com menos força.

Foi um momento que me marcou muito. Tudo fazia lembrar um filme que eu própria assisti anteriormente, denominado “Amigos Improváveis”, e que tinha sido um sucesso mundial.

Apesar de ter adorado o filme e ter tirado várias conclusões, na verdade, quando olhei para aquele jovem a primeira vez, não consegui conter alguns julgamentos. Não que tivesse pensado que o mesmo se estivesse a aproveitar, mas realmente cheguei a pensar que o mesmo não tinha qualificações. Estava errada, muito errada. Tinha e tinha muitas, porque poucas seriam as pessoas capazes de pôr de lado os olhares críticos das outras pessoas e continuar a agir em prol de uma pessoa de quem cuida. Poucos seriam aqueles que dariam uma chapada forte, capaz de causar um som terrível, só porque, por questões de alterações sensibilidade, o senhor não sentia carinho de outra forma.

O jovem sabia tudo, tudo o que o utente gostava e não gostava, sabia como lidar com ele em todas as situações, sem nunca deixar de ser genuíno. E a prova de que isso era eficaz era a felicidade explicita na cara do senhor, que sentia que tinha ali um amigo.

O utente olhou para mim e o seu olhar disse tudo… foi um olhar de “percebes agora?” que não precisou de qualquer palavra. Eu, respondi da mesma forma, dizendo algo não-verbal, abanando a cabeça como se estivesse a responder afirmativamente à sua questão.

Tenho a certeza que eu e todos os que estavam presentes naquele momento levámos uma chapada maior do que a que o jovem deu ao senhor… isso é certo.

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